terça-feira, 12 de novembro de 2013

História em Quadrinhos, Educação Física e Ditadura Militar: texto 11

História em Quadrinhos, Educação Física e Ditadura Militar: estratégias inovadoras para conservar antigas representações de esporte na escola[1].

 Joelcio Fernandes Pinto[2]

            Este artigo traz uma discussão sobre o uso da História em Quadrinho na divulgação do esporte na sociedade brasileira - principalmente na escola, durante a Ditadura Militar (década de 70). Nas linhas que se segue o leitor poderá perceber o quão inovador foi a estratégia de utilizar os Quadrinhos para divulgar o esporte, bem como, foi conservadora as representações de organização social contidas nos enredos das histórias.
O gênero literário de História em Quadrinhos foi alvo de criticas, perseguição, censura e louvores. Muitos pesquisadores acreditam que existe nas Histórias em Quadrinhos (e também em outros meios de comunicação), um mecanismo básico de aprendizagem, que é o da “identificação projetiva”, o qual atua na direção de um reforço de atitudes à imitação dos heróis das histórias. Os defensores dessa literatura se baseiam na posição psicológica catártica, através da qual os leitores ao se deliciarem com as histórias, aliviam seus complexos e frustrações.
Segundo Anselmo (1975, p.95), são conflitivas e frequentemente extremadas as posições em relação às funções das Histórias em Quadrinhos. Em seus estudos a autora aponta interessantes relações dessa literatura com adolescentes[3].
Nesse sentido, Araújo (1999) indica um conceito do Quadrinho-arte, que consiste na realização:
“bem sucedida de sua proposta criativa, na adequação entre o tema, ritmo de narrativa, estilo de desenho e texto... Não é apenas a excelência técnica que faz a arte, mas a forma como o artista relaciona técnica (téchne) e expressão artística (poiesis), compondo uma obra que, no conjunto dos elementos que a compõem e na relação com a produção que a precedeu, seja original e inovadora.” Araújo (1999).
Segundo este autor, essa combinação poderia fazer parte da “indústria cultural” que promoveu a universalização das imagens como um bem de consumo e ao mesmo tempo representar uma postura critica e até questionadora da sociedade que a produziu. Crítico das Histórias em Quadrinhos pasteurizadas, com desenhos repetitivos e com enredos clicherescos, o autor não considera tais trabalhos uma arte, pois se prestam exclusivamente a fins comerciais.

A REVISTA DE HISTÓRIA EM QUADRINHOS DEDINHO
O governo federal brasileiro distribui gratuitamente nas escolas no período de 1971 à 1978, nove milhões de exemplares de uma Revista de História em Quadrinhos que recebeu o nome de DEDINHO em homenagem ao Departamento de Desporto e Educação Física, o DED, criado em 1970 para substituir a Divisão de Educação Física (DEF). Tal departamento ficou subordinado ao Ministério da Educação e Cultura (MEC) e recebeu uma grande missão que foi a de construir uma “mentalidade desportiva no país”. Para tanto, os agentes governamentais criaram uma Campanha Nacional de Esclarecimento Desportivo (CNED) onde foram produzidos vários impressos para diferentes segmentos da sociedade e elegeram o suporte de histórias em quadrinhos como o principal veículo para difundir suas idéias sobre o Esporte e a Educação Física na escola, como afirma o seu idealizador[4]. A facilidade de motivar essa faixa etária (7 a 14 anos) a praticar esporte foi uma das justificativas para se fazer tamanho investimento. A idéia principal era incentivar a prática esportiva através de explicações adaptadas para a população infantil. Uma forma encontrada para facilitar o entendimento dos aspectos técnicos e táticos do esporte foi a “cartilha desportiva”. Uma outra justificativa que reforçou a adoção das cartilhas desportivas foi o entendimento de que a criança poderia levar a população adulta a praticar mais tarde. Assim sendo, as revistas eram confeccionadas para um público infantil (indicação que consta da contra-capa), mas tinham interesse em atingir também o público adulto. Dessa maneira, segundo as intenções de seus autores as crianças foram fins e ao mesmo tempo meios para incentivar a prática esportiva em vários segmentos da sociedade. 
A escolha de uma revista em quadrinhos destinada a crianças em idade escolar para circular representações e para tentar conformar práticas de Educação Física e esporte na escola não parece ter sido aleatória. Naquele momento, segundo Wellington Araújo (1999), esse tipo de impresso experimentava o auge da sua expansão, no Brasil.
Foram elaboradas seis histórias diferentes, cada uma contando sobre um determinado esporte. As três primeiras histórias criadas foram a respeito do Atletismo e tinham como títulos: “PERNAS PRA QUE TE QUERO !” (série nº 1), fazendo alusão as Corridas; “O PULO DO GATO” (série nº 2), fazendo referência aos Saltos e “BRAÇO É BRAÇO” (série nº 3), uma história sobre os Lançamentos e Arremessos. Estas três peças foram as únicas reeditadas. Os outros três números contavam as histórias dos esportes coletivos e receberam os títulos: “CESTA MINHA GENTE” (série nº 4 - Basquete);  “BOLA PRA CIMA (série nº5- Vôlei) e BOLA NO BARBANTE (série nº 6 - Handebol).

A MATERIALIDADE E A CIRCULAÇÃO DA REVISTA
As revistas em quadrinhos infantis dirigem-se a um público especifico, ou seja, às crianças em idade escolar, pois, a faixa etária anterior a seis anos de idade, além de não ter grandes intimidades com a linguagem escrita não respeitam a fragilidade física das mesmas. Assim sendo, as revistas “DEDINHO” não fugiram a regra, ou seja, seguiram as leis mercadológicas do gênero, adotando tamanhos semelhantes as das demais Histórias em Quadrinhos, os quais giram em torno de 15cm de largura e 21cm de comprimento. Elas foram editadas em cores e em papel próprio para o uso escolar, ou seja, com um mínimo de resistência para uso variado de alunos. Todas as histórias foram narradas em exatamente 48 páginas e cada página era dividida, em média, em quatro quadrados de desenhos e balões de texto.
Segundo Roger Chartier (1990) tais características são de extrema relevância, pois, influenciaram de maneira peculiar a leitura e a conseqüente apropriação. Assim, o suporte escolhido (revistinhas de Histórias em Quadrinhos) permitiu e/ou facilitou significativamente a leitura das mensagens por parte de seus leitores, o que não aconteceria se tal suporte fosse um livro de capa dura, com 100 páginas escritas e sem nenhum desenho. Este meio de comunicação exigiria um ambiente mais tranqüilo, com armários próprios para leitura e uma motivação especifica aspectos não muito presentes numa aula de Ed. Física. Dessa maneira, as revistas de Histórias em Quadrinhos eram não só próprias para a faixa etária eleita como alvo (7 a 14 anos), mas também para o tipo de leitura possível em aulas de Ed. Física, ou seja, em um ambiente com vários atrativos, sem mesa e/ou cadeira, observa-se então o quão assertivo foi a escolha desse suporte.
Foram produzidas um milhão de cópias de cada peça, sendo que as três primeiras peças foram reeditadas. Assim sendo, nesse período de 1971 a 1978, foram colocadas em circulação nove milhões de revistas de Histórias em Quadrinhos, sobre esportes. Comparando tais números com os de outros gibis[5] de grande popularidade, tais como, Pererê e Luluzinha, os quais venderam, em quatro anos, quatro milhões de cópias, percebe-se a magnitude da repercussão dessa estratégia e o quanto esse segmento da população foi exposto à tal tema.
Na contra-capa das revistas além das informações sobre quem editou, o ano, os responsáveis pelo trabalho, etc, vinha também a seguinte orientação: “ Utilização orientada pelo professor de Educação Física para crianças a partir de oito anos de idade”. Essa indicação sugere que tais revistas fossem usadas nas aulas de Ed. Física e pelo professor da área, ou seja, a circulação deveria se restringir a essas aulas. Contudo, no Jornal O PODIUM nº3, impresso criado pelo DED para fazer circular informações sobre a campanha, aparece, na seção de cartas do leitor, uma notícia de que um professor de Português estava usando a revista em sua aula. Percebe-se então que a circulação desses gibis não ficou restrito às aulas de Educação Física. Mesmo considerando que tal professor as utilizou com outros fins (estilos literários, por exemplo) este acontecimento indica uma reutilização e um conseqüente reforço sobre o assunto naquela escola. Destaca-se então, que as formas de circulação da revista na escola não foram únicas, como se imaginava de início, o que aumentou as possibilidades de leitura e reforçou as representações contidas em tal meio. Acredita-se então, que o suporte adotado foi essencial para sua ampla utilização e circulação de suas mensagens.

O ENREDO DAS HISTÓRIAS
A revista de História em Quadrinhos, DEDINHO foi não só uma iniciativa para  incentivar o Esporte na Escola, como também uma estratégia que construiu e/ou consolidou representações acerca destas duas áreas (Escola e Esporte). Tais representações, assimiladas ou não, fizeram parte do ideário do governo militar e foram usadas também para consolidar as convicções políticas do mesmo.
DEDINHO é o personagem central das seis histórias em quadrinhos. Envolvido em situações relacionadas a diferentes modalidades esportivas (ATLETISMO, NATAÇÃO, VOLEIBOL, BASQUETE E HANDEBOL) ele está sempre acompanhado de uma turma alegre e disposta a praticar tais esportes a todo o momento.  De um modo geral as histórias narravam as experiências de uma turma[6] de cinco garotos e duas meninas, que ora transformava brincadeiras em esportes de competição, os quais eram detalhadamente explicados através das regras e das instalações esportivas; ora se preparava para participar de competições esportivas organizadas pelas escolas. Assim, o arremesso do dardo teve como inspiração uma brincadeira de arremessar pedras no lago e o treinamento da corrida aconteceu em meio a muitas árvores e cercas de alambrado, mas, como tais situações eram potencialmente perigosas e confusas era preciso colocar “ordem” para alcançar o “progresso”. As representações a respeito do papel da mulher na sociedade presentes nas histórias apontam para uma discriminação feminina em relação ao universo masculino. Apesar do esforço do DED, representado pelo Dedinho, em incluir as meninas nas práticas esportivas, elas estão sempre em número menor, não aparecem nas competições finais e são sempre recriminadas por seus colegas com práticas machistas, as quais não desaparecem com as broncas das personagens femininas. Além disso, quando não estão participando das discussões e aventuras da turma, somente elas aparecem ora cuidando dos afazeres domésticos, ora brincando de boneca. A iniciativa de se retratar o que se passava na realidade acabou por reforçar, ainda mais, um comportamento discriminatório em relação às mulheres, passando um entendimento de que a elas cabiam apenas a execução de tais tarefas. Na Revista Dedinho não só as regras esportivas indicaram freqüentemente que as competições masculinas deveriam ser praticadas em separado das femininas, como também os personagens masculinos, pois segundo a fala de um deles ( o Poeta), “mulher só atrapalha” o jogo. Dessa forma as histórias sugeriram, por meio da explicação das regras esportivas e das práticas machistas, o sexismo nas aulas de Educação Física. O Esporte foi considerado uma prática de muitas utilidades. Especialmente para o Governo Militar ele poderia funcionar como uma atividade reguladora, pois além de proporcionar, por meio de seus treinamentos, bem planejados e dentro das regras esportivas, uma determinada ordem social, ele seria capaz também de propiciar progresso ao País (“Ordem para o progresso” – frase presente no enredo de uma das histórias), por meio da melhoria da representatividade esportiva, que aconteceria com a seleção de talentos feita à partir de um contingente bastante amplo de praticantes. O Esporte foi então orientado para que fosse praticado dentro de certos parâmetros, a maioria deles internacional. Quanto mais sério fosse o treinamento melhor, pois a disciplina era a tônica do momento. O Esporte foi considerado uma prática eminentemente positiva e natural. Uma atividade interessante, independente de quem o pratica e de como se pratica. Reforça-se uma positividade do Esporte pelas comparações com a vida, com a saúde, com a cultura e com o desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As características peculiares de combinação de diferentes textos (imagem e escrita), o fácil manuseio para leitura, as cores atrativas e a fácil circulação em diversos públicos permitem definir a Revista de Histórias em Quadrinhos Dedinho como uma estratégia inovadora para incentivar a prática esportiva na sociedade e principalmente na escola. Ao mesmo tempo em que se percebe uma modernização nas intervenções políticas com aumento de verbas e com a criação de diferentes e interessantes mecanismos de disseminação de um ideário político, identifica-se o reforço de representações conservadoras de uma dada ordem social para o desenvolvimento. Os princípios conservadores de tecnificação, de classificação, de seleção de talentos, de ordem e de disciplina, fundamentos do tão propagado progresso que o governo militar defendia foram amplamente anunciados, bem como, uma dada discriminação da participação conjunta das mulheres na prática esportiva, reforçando o sexismo nas práticas sociais cotidianas e uma naturalização das qualidades do esporte para o desenvolvimento da saúde, da cultura e da sociedade como um todo, tema que vinha sendo debatido e criticado no interior do próprio governo e na sociedade civil.
Seria assertivo afirmar que se trata de um paradoxo a situação onde a inovação aparece anunciando representações conservadoras? Ou inovar é uma necessidade imprescindível para a sobrevivência de representações conservadoras? Eis aqui uma boa discussão para um futuro artigo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANSELMO, Zilda Augusta. Histórias em Quadrinhos. Petrópolis: Vozes, 1975.
ARAUJO, Wellington Tadeu Sberk de. Quadrinho-arte: Uma leitura da revista Pererê de Ziraldo. Tese de Mestrado, UFMG, Belo Horizonte, 1999.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Editora Difel, 1988.
PINTO, Joelcio Fernandes. Representações de Esporte e Educação Física na Ditadura Militar: uma leitura a partir da revista de história em quadrinhos Dedinho (1968 a 1974). Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.

SOUSA, Eustáquia Salvadora de, VAGO, Tarcísio Mauro.  Trilhas e partilhas: ......educação física na cultura escolar e nas práticas sociais. Belo Horizonte:  ......Cultura, 1997.






[1] Este artigo é um desdobramento de minha dissertação de mestrado intitulada “REPRESENTAÇÕES DE EDUCAÇÃO FISICA E ESPORTE NA DITADURA MILITAR: uma leitura a partir da revista de história em quadrinhos Dedinho (1969-1974),” defendida em 2003 no programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da UFMG na linha de pesquisa de História da Educação.
[2] Doutorando da Faculdade de Educação da UFMG, membro do CEMEF (Centro de Memórias da Educação Física da UFMG) e Prof. na PUC/MINAS no curso de Educação Física.
[3] Em uma pesquisa por amostragem, Anselmo (1975, p.115) indicou que o percentual maior de leitores de HQ se encontra na 1ª série (94%) e que esse percentual tende a cair lento e gradualmente com o aumento da idade. Não foi verificada nenhuma relação de dependência entre a variável sexo e a variável de leitores de HQ. Ou seja, ambos os sexos consomem essa literatura igualmente. Analisando a relação do consumo de HQ com a variável nível sócio-econômico (Escala Azzi Marchi), a autora aponta um percentual maior de leitores no nível médio (95%) seguido de perto pelo nível rico (93%). Não foi encontrada nenhuma relação de dependência entre o rendimento escolar geral e a freqüência de leitura de HQ. Ou seja, tanto alunos com notas altas, como os com notas baixas são igualmente leitores. Por último, mas não menos importante, a autora constatou que o percentual de leitores de HQ é maior entre os adolescentes que praticam esportes (91%) do que entre os que não praticam (82%).
[4] Em entrevista o coordenador da Campanha Nacional de Esclarecimento Desportivo, o Capitão Roberto Jenkins de Lemos, afirma que o projeto da revista de História em Quadrinhos Dedinho teve uma atenção especial na campanha.
[5] Outros nomes dados para Histórias em Quadrinhos: Gibis, Tirinhas,
[6] Dedinho, personagem principal das histórias, com aparência bem definida e quem definia todas as situações.Paulo, um garoto negro, que usava óculos e estava sempre bem informado sobre tudo, representava o intelectual.  Poeta, um garoto alto, branco, que andava sempre acompanhado por sua viola e do seu cão Lampião, o mascote da turma. Inês, uma menina que só pensava em guloseimas, era a gordinha da turma. Caco, um menino louro e alto. Zeca um garoto moreno, baixo e com cabelos pretos. Aninha, uma garota magra de olhos e cabelos pretos e que não largava sua boneca. E por ultimo Marcelo, um garoto branco, louro e baixinho.

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