História em Quadrinhos,
Educação Física e Ditadura Militar: estratégias inovadoras para conservar
antigas representações de esporte na escola[1].
Joelcio
Fernandes Pinto[2]
Este artigo traz uma discussão sobre
o uso da História em Quadrinho na divulgação do esporte na sociedade brasileira
- principalmente na escola, durante a Ditadura Militar (década de 70). Nas
linhas que se segue o leitor poderá perceber o quão inovador foi a estratégia
de utilizar os Quadrinhos para divulgar o esporte, bem como, foi conservadora
as representações de organização social contidas nos enredos das histórias.
O gênero literário de História em Quadrinhos foi alvo de criticas,
perseguição, censura e louvores. Muitos pesquisadores acreditam que existe nas
Histórias em Quadrinhos (e também em outros meios de comunicação), um mecanismo
básico de aprendizagem, que é o da “identificação projetiva”, o qual atua na
direção de um reforço de atitudes à imitação dos heróis das histórias. Os
defensores dessa literatura se baseiam na posição psicológica catártica,
através da qual os leitores ao se deliciarem com as histórias, aliviam seus
complexos e frustrações.
Segundo Anselmo (1975, p.95), são conflitivas e frequentemente extremadas
as posições em relação às funções das Histórias em Quadrinhos. Em seus
estudos a autora aponta interessantes relações dessa literatura com
adolescentes[3].
Nesse sentido, Araújo (1999) indica um conceito do Quadrinho-arte, que
consiste na realização:
“bem sucedida de sua proposta criativa,
na adequação entre o tema, ritmo de narrativa, estilo de desenho e texto... Não
é apenas a excelência técnica que faz a arte, mas a forma como o artista
relaciona técnica (téchne) e expressão artística (poiesis), compondo uma obra
que, no conjunto dos elementos que a compõem e na relação com a produção que a
precedeu, seja original e inovadora.” Araújo (1999).
Segundo este autor, essa combinação poderia fazer parte da “indústria
cultural” que promoveu a universalização das imagens como um bem de consumo e
ao mesmo tempo representar uma postura critica e até questionadora da sociedade
que a produziu. Crítico das Histórias em Quadrinhos pasteurizadas, com desenhos
repetitivos e com enredos clicherescos, o autor não considera tais trabalhos
uma arte, pois se prestam exclusivamente a fins comerciais.
A REVISTA DE HISTÓRIA
EM QUADRINHOS
DEDINHO
O governo
federal brasileiro distribui gratuitamente nas escolas no período de 1971 à
1978, nove milhões de exemplares de uma Revista de História em Quadrinhos que
recebeu o nome de DEDINHO em homenagem ao Departamento de Desporto e Educação
Física, o DED, criado em 1970 para substituir a Divisão de Educação Física
(DEF). Tal departamento ficou subordinado ao Ministério da Educação e Cultura
(MEC) e recebeu uma grande missão que foi a de construir uma “mentalidade
desportiva no país”. Para tanto, os agentes governamentais criaram uma Campanha
Nacional de Esclarecimento Desportivo (CNED) onde foram produzidos vários
impressos para diferentes segmentos da sociedade e elegeram o suporte de
histórias em quadrinhos como o principal veículo para difundir suas idéias
sobre o Esporte e a Educação Física na escola, como afirma o seu idealizador[4]. A
facilidade de motivar essa faixa etária (7 a 14 anos) a praticar esporte foi uma das
justificativas para se fazer tamanho investimento. A idéia principal era
incentivar a prática esportiva através de explicações adaptadas para a
população infantil. Uma forma encontrada para facilitar o entendimento dos
aspectos técnicos e táticos do esporte foi a “cartilha desportiva”. Uma outra
justificativa que reforçou a adoção das cartilhas desportivas foi o
entendimento de que a criança poderia levar a população adulta a praticar mais
tarde. Assim sendo, as revistas eram confeccionadas para um público infantil
(indicação que consta da contra-capa), mas tinham interesse em atingir também o
público adulto. Dessa maneira, segundo as intenções de seus autores as crianças
foram fins e ao mesmo tempo meios para incentivar a prática esportiva em vários
segmentos da sociedade.
A escolha de uma revista em
quadrinhos destinada a crianças em idade escolar para circular representações e
para tentar conformar práticas de Educação Física e esporte na escola não
parece ter sido aleatória. Naquele momento, segundo Wellington Araújo (1999), esse
tipo de impresso experimentava o auge da sua expansão, no Brasil.
Foram
elaboradas seis histórias diferentes, cada uma contando sobre um determinado
esporte. As três primeiras histórias criadas foram a respeito do Atletismo e
tinham como títulos: “PERNAS PRA QUE TE QUERO !” (série nº 1), fazendo alusão
as Corridas; “O PULO DO GATO” (série nº 2), fazendo referência aos Saltos e
“BRAÇO É BRAÇO” (série nº 3), uma história sobre os Lançamentos e Arremessos.
Estas três peças foram as únicas reeditadas. Os outros três números contavam as
histórias dos esportes coletivos e receberam os títulos: “CESTA MINHA GENTE”
(série nº 4 - Basquete); “BOLA PRA CIMA
(série nº5- Vôlei) e BOLA NO BARBANTE (série nº 6 - Handebol).
A MATERIALIDADE E A CIRCULAÇÃO DA REVISTA
As revistas em
quadrinhos infantis dirigem-se a um público especifico, ou seja, às crianças em
idade escolar, pois, a faixa etária anterior a seis anos de idade, além de não
ter grandes intimidades com a linguagem escrita não respeitam a fragilidade
física das mesmas. Assim sendo, as revistas “DEDINHO” não fugiram a regra, ou
seja, seguiram as leis mercadológicas do gênero, adotando tamanhos semelhantes
as das demais Histórias em Quadrinhos, os quais giram em torno de 15cm de
largura e 21cm de comprimento. Elas foram editadas em cores e em papel próprio
para o uso escolar, ou seja, com um mínimo de resistência para uso variado de
alunos. Todas as histórias foram narradas em exatamente 48 páginas e cada
página era dividida, em média, em quatro quadrados de desenhos e balões de
texto.
Segundo Roger
Chartier (1990) tais características são de extrema relevância, pois,
influenciaram de maneira peculiar a leitura e a conseqüente apropriação. Assim,
o suporte escolhido (revistinhas de Histórias em Quadrinhos) permitiu e/ou
facilitou significativamente a leitura das mensagens por parte de seus
leitores, o que não aconteceria se tal suporte fosse um livro de capa dura, com
100 páginas escritas e sem nenhum desenho. Este meio de comunicação exigiria um
ambiente mais tranqüilo, com armários próprios para leitura e uma motivação
especifica aspectos não muito presentes numa aula de Ed. Física. Dessa maneira,
as revistas de Histórias em Quadrinhos eram não só próprias para a faixa etária
eleita como alvo (7 a
14 anos), mas também para o tipo de leitura possível em aulas de Ed. Física, ou
seja, em um ambiente com vários atrativos, sem mesa e/ou cadeira, observa-se
então o quão assertivo foi a escolha desse suporte.
Foram produzidas um milhão de cópias de cada peça, sendo que as três
primeiras peças foram reeditadas. Assim sendo, nesse período de 1971 a 1978, foram colocadas
em circulação nove milhões de revistas de Histórias em Quadrinhos, sobre
esportes. Comparando tais números com os de outros gibis[5] de
grande popularidade, tais como, Pererê e Luluzinha, os quais venderam, em
quatro anos, quatro milhões de cópias, percebe-se a magnitude da repercussão
dessa estratégia e o quanto esse segmento da população foi exposto à tal tema.
Na contra-capa das revistas além das informações sobre quem editou, o
ano, os responsáveis pelo trabalho, etc, vinha também a seguinte orientação: “
Utilização orientada pelo professor de Educação Física para crianças a partir
de oito anos de idade”. Essa indicação sugere que tais revistas fossem usadas
nas aulas de Ed. Física e pelo professor da área, ou seja, a circulação deveria
se restringir a essas aulas. Contudo, no Jornal O PODIUM nº3, impresso criado
pelo DED para fazer circular informações sobre a campanha, aparece, na seção de
cartas do leitor, uma notícia de que um professor de Português estava usando a
revista em sua aula. Percebe-se então que a circulação desses gibis não ficou
restrito às aulas de Educação Física. Mesmo considerando que tal professor as
utilizou com outros fins (estilos literários, por exemplo) este acontecimento
indica uma reutilização e um conseqüente reforço sobre o assunto naquela
escola. Destaca-se então, que as formas de circulação da revista na escola não
foram únicas, como se imaginava de início, o que aumentou as possibilidades de
leitura e reforçou as representações contidas em tal meio. Acredita-se então,
que o suporte adotado foi essencial para sua ampla utilização e circulação de
suas mensagens.
O ENREDO DAS HISTÓRIAS
A revista de
História em Quadrinhos, DEDINHO foi não só uma iniciativa para incentivar o Esporte na Escola, como também
uma estratégia que construiu e/ou consolidou representações acerca destas duas
áreas (Escola e Esporte). Tais representações, assimiladas ou não, fizeram
parte do ideário do governo militar e foram usadas também para consolidar as
convicções políticas do mesmo.
DEDINHO é o personagem central das seis
histórias em
quadrinhos. Envolvido em situações relacionadas a diferentes
modalidades esportivas (ATLETISMO, NATAÇÃO, VOLEIBOL, BASQUETE E HANDEBOL) ele
está sempre acompanhado de uma turma alegre e disposta a praticar tais esportes
a todo o momento. De um modo geral as
histórias narravam as experiências de uma turma[6] de
cinco garotos e duas meninas, que ora transformava brincadeiras em esportes de
competição, os quais eram detalhadamente explicados através das regras e das
instalações esportivas; ora se preparava para participar de competições
esportivas organizadas pelas escolas. Assim, o arremesso do dardo teve como
inspiração uma brincadeira de arremessar pedras no lago e o treinamento da corrida
aconteceu em meio a muitas árvores e cercas de alambrado, mas, como tais
situações eram potencialmente perigosas e confusas era preciso colocar “ordem”
para alcançar o “progresso”. As representações a respeito do papel da mulher na
sociedade presentes nas histórias apontam para uma discriminação feminina em
relação ao universo masculino. Apesar do esforço do DED, representado pelo
Dedinho, em incluir as meninas nas práticas esportivas, elas estão sempre em
número menor, não aparecem nas competições finais e são sempre recriminadas por
seus colegas com práticas machistas, as quais não desaparecem com as broncas
das personagens femininas. Além disso, quando não estão participando das discussões
e aventuras da turma, somente elas aparecem ora cuidando dos afazeres
domésticos, ora brincando de boneca. A iniciativa de se retratar o que se
passava na realidade acabou por reforçar, ainda mais, um comportamento
discriminatório em relação às mulheres, passando um entendimento de que a elas
cabiam apenas a execução de tais tarefas. Na Revista Dedinho não só as regras
esportivas indicaram freqüentemente que as competições masculinas deveriam ser
praticadas em separado das femininas, como também os personagens masculinos,
pois segundo a fala de um deles ( o Poeta), “mulher só atrapalha” o jogo. Dessa
forma as histórias sugeriram, por meio da explicação das regras esportivas e
das práticas machistas, o sexismo nas aulas de Educação Física. O Esporte foi
considerado uma prática de muitas utilidades. Especialmente para o Governo
Militar ele poderia funcionar como uma atividade reguladora, pois além de
proporcionar, por meio de seus treinamentos, bem planejados e dentro das regras
esportivas, uma determinada ordem social, ele seria capaz também de propiciar
progresso ao País (“Ordem para o progresso” – frase presente no enredo de uma
das histórias), por meio da melhoria da representatividade esportiva, que
aconteceria com a seleção de talentos feita à partir de um contingente bastante
amplo de praticantes. O Esporte foi então orientado para que fosse praticado
dentro de certos parâmetros, a maioria deles internacional. Quanto mais sério
fosse o treinamento melhor, pois a disciplina era a tônica do momento. O Esporte
foi considerado uma prática eminentemente positiva e natural. Uma atividade
interessante, independente de quem o pratica e de como se pratica. Reforça-se
uma positividade do Esporte pelas comparações com a vida, com a saúde, com a
cultura e com o desenvolvimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As características peculiares de combinação de diferentes
textos (imagem e escrita), o fácil manuseio para leitura, as cores atrativas e a
fácil circulação em diversos públicos permitem definir a Revista de
Histórias em Quadrinhos
Dedinho como uma estratégia inovadora para incentivar a
prática esportiva na sociedade e principalmente na escola. Ao mesmo tempo em
que se percebe uma modernização nas intervenções políticas com aumento de
verbas e com a criação de diferentes e interessantes mecanismos de disseminação
de um ideário político, identifica-se o reforço de representações conservadoras
de uma dada ordem social para o desenvolvimento. Os princípios conservadores de
tecnificação, de classificação, de seleção de talentos, de ordem e de
disciplina, fundamentos do tão propagado progresso que o governo militar
defendia foram amplamente anunciados, bem como, uma dada discriminação da
participação conjunta das mulheres na prática esportiva, reforçando o sexismo
nas práticas sociais cotidianas e uma naturalização das qualidades do esporte
para o desenvolvimento da saúde, da cultura e da sociedade como um todo, tema
que vinha sendo debatido e criticado no interior do próprio governo e na
sociedade civil.
Seria assertivo afirmar que se trata de um paradoxo a
situação onde a inovação aparece anunciando representações conservadoras? Ou inovar
é uma necessidade imprescindível para a sobrevivência de representações
conservadoras? Eis aqui uma boa discussão para um futuro artigo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ANSELMO,
Zilda Augusta. Histórias em Quadrinhos. Petrópolis : Vozes, 1975.
ARAUJO,
Wellington Tadeu Sberk de. Quadrinho-arte: Uma leitura da revista Pererê de
Ziraldo. Tese de Mestrado, UFMG, Belo Horizonte, 1999.
CHARTIER,
Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Editora
Difel, 1988.
PINTO, Joelcio
Fernandes. Representações de Esporte e Educação Física na Ditadura Militar: uma
leitura a partir da revista de história em quadrinhos Dedinho
(1968 a
1974). Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em
Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.
SOUSA, Eustáquia Salvadora de, VAGO,
Tarcísio Mauro. Trilhas e partilhas:
......educação física na cultura escolar e nas práticas sociais. Belo
Horizonte: ......Cultura, 1997.
[1]
Este artigo é um desdobramento de minha dissertação de mestrado intitulada “REPRESENTAÇÕES DE
EDUCAÇÃO FISICA E ESPORTE NA DITADURA MILITAR: uma leitura a partir da revista
de história em
quadrinhos Dedinho (1969-1974),” defendida em 2003 no
programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da UFMG na linha de pesquisa
de História da Educação.
[2]
Doutorando da Faculdade de Educação da UFMG, membro do CEMEF (Centro de
Memórias da Educação Física da UFMG) e Prof. na PUC/MINAS no curso de Educação
Física.
[3] Em uma pesquisa por amostragem, Anselmo (1975, p.115)
indicou que o percentual maior de leitores de HQ se encontra na 1ª série (94%)
e que esse percentual tende a cair lento e gradualmente com o aumento da idade.
Não foi verificada nenhuma relação de dependência entre a variável sexo e a
variável de leitores de HQ. Ou seja, ambos os sexos consomem essa literatura
igualmente. Analisando a relação do consumo de HQ com a variável nível
sócio-econômico (Escala Azzi Marchi), a autora aponta um percentual maior de
leitores no nível médio (95%) seguido de perto pelo nível rico (93%). Não foi
encontrada nenhuma relação de dependência entre o rendimento escolar geral e a
freqüência de leitura de HQ. Ou seja, tanto alunos com notas altas, como os com
notas baixas são igualmente leitores. Por último, mas não menos importante, a
autora constatou que o percentual de leitores de HQ é maior entre os
adolescentes que praticam esportes (91%) do que entre os que não praticam
(82%).
[4] Em
entrevista o coordenador da Campanha Nacional de Esclarecimento Desportivo, o
Capitão Roberto Jenkins de Lemos, afirma que o projeto da revista de História em Quadrinhos Dedinho
teve uma atenção especial na campanha.
[5] Outros
nomes dados para Histórias em Quadrinhos: Gibis, Tirinhas,
[6] Dedinho, personagem principal das histórias, com
aparência bem definida e quem definia todas as situações.Paulo, um garoto
negro, que usava óculos e estava sempre bem informado sobre tudo, representava
o intelectual. Poeta, um garoto alto,
branco, que andava sempre acompanhado por sua viola e do seu cão Lampião, o
mascote da turma. Inês, uma menina que só pensava em guloseimas, era a gordinha
da turma. Caco, um menino louro e alto. Zeca um garoto moreno, baixo e com
cabelos pretos. Aninha, uma garota magra de olhos e cabelos pretos e que não
largava sua boneca. E por ultimo Marcelo, um garoto branco, louro e baixinho.
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